Racismo nos esportes além da arquibancada
- Mariana Virgílio

- 12 de dez.
- 4 min de leitura
O que os dados ainda não contam sobre a vida de atletas negros.

Quando o Ministério da Igualdade Racial e o Ministério do Esporte anunciam uma pesquisa nacional sobre racismo e injúria racial no esporte, é sinal de que o tema finalmente saiu da lateral do campo e entrou no centro do jogo. A consulta pública lançada em novembro de 2025 quer ouvir atletas, torcedores, profissionais e sociedade para mapear o cenário e orientar políticas públicas.
É um passo histórico que merece ser celebrado. Mas, se não tomar cuidado, corre-se o risco de repetir o mesmo erro: medir o racismo só pelo grito na arquibancada, e não pela estrutura que decide quem chega (e quem nunca chega) ao alto rendimento.
Quando o dado só enxerga o xingamento
Nos últimos anos, o Observatório da Discriminação Racial no Futebol consolidou um dos principais retratos do racismo no esporte brasileiro. O relatório de 2023 mostrou 136 casos de racismo no futebol brasileiro, um aumento de quase 40% em relação a 2022.
Já a prévia do relatório de 2024 indica uma queda de cerca de 19,8% nos casos monitorados (109 registros contra 136 no ano anterior), mas com um alerta: as punições seguem brandas, descoladas da gravidade do problema.
Em paralelo, outros levantamentos mostram que o racismo não é exclusividade do futebol profissional de elite. Em 2019, os casos de injúria racial no esporte brasileiro atingiram o maior índice em cinco anos, com episódios espalhados por diversas modalidades.
Esses números são fundamentais. Eles colocam pressão em clubes, federações e órgãos de justiça desportiva. Eles produzem manchete, audiência, CPI, notas oficiais e audiências públicas.
Mas eles ainda falam, majoritariamente, de episódios: – o torcedor que imita macaco, – o xingamento captado ao vivo na transmissão, – o caso que vira trending topic.
Pouco se mede, porém, sobre a engrenagem de desigualdades que age em silêncio antes, durante e depois desses episódios.
É aqui que entra a provocação que a AFROESPORTE e o INSTITUTO AFROESPORTE querem trazer para o debate: “...se a gente quer mesmo enfrentar o racismo no esporte, precisa parar de olhar só para o grito e começar a enxergar quem controla o microfone, o regulamento e o contrato.”
O racismo que começa muito antes do estádio
Hoje, pesquisas acadêmicas e monitoramentos apontam uma contradição conhecida por quem vive o esporte por dentro:
negros são maioria entre os jogadores,
mas seguem sendo uma minoria quase invisível entre árbitros, treinadores, gestores e dirigentes. Link da matéria.
Um estudo sobre a elite do futebol brasileiro mostrou que, em 2024, menos de 8% dos treinadores da Série A e B se declaravam pretos ou pardos: apenas seis nomes entre 81 profissionais contabilizados.
Em paralelo, análises sobre racismo estrutural no futebol desmontam o mito da “democracia racial em campo”: o esporte que, ao mesmo tempo em que projetou ídolos negros, sempre impôs barreiras para que esses mesmos corpos negros ocupassem espaços de comando e decisão.
O que esse conjunto de dados e estudos coloca na mesa é o seguinte: o racismo no esporte não começa no xingamento da arquibancada; ele começa no filtro de quem entra, de quem assina, de quem é indicado, de quem tem margem para errar.
Na prática, para atletas negros, isso significa:
Filtro na base: quantos talentos negros são descartados cedo porque não têm recurso para pagar escolinha, deslocamento ou material?
Falta de rede: quem não tem empresário, parente na diretoria ou acesso a determinadas escolas de formação entra sempre alguns passos atrás.
Contratos piores e menos estáveis: estudos sobre desigualdade racial no futebol apontam que jogadores pretos e pardos tendem a ter salários menores e maior exposição à instabilidade, mesmo em trajetórias de desempenho similar às de atletas brancos.
Margem de erro reduzida: um atleta negro “não pode” ter a mesma sequência de partidas ruins, o mesmo tempo de adaptação ou a mesma liberdade de comportamento que colegas brancos.
Nada disso costuma aparecer no formulário padrão de denúncia. E, muitas vezes, nem mesmo nas estatísticas oficiais.
Quando o dado não enxerga o desgaste emocional
Outro ponto pouco mensurado é o impacto subjetivo do racismo na vida do atleta. Pesquisas em psicologia do esporte mostram que a repetição de situações racistas, gera desgaste emocional, sensação de não pertencimento, autocensura e, em muitos casos, abandono precoce da carreira.
Na rotina, isso aparece em coisas como:
o atleta que começa a se podar, com medo de ser lido como “problemático”;
o jovem que desiste da base depois de um episódio de humilhação pública;
a jogadora que percebe que, por mais que jogue bem, o marketing do clube nunca a escolhe para estampar campanhas.
O racismo que cansa, adoece e isola raramente entra em relatórios. Ainda assim, ele muda silenciosamente a curva da carreira de atletas negros, encurtando trajetórias, travando renovações de contrato e afastando talentos da alta performance.

O lugar de fala da AFROESPORTE
Como projeto que nasceu para ampliar visibilidade, rede e oportunidades para atletas negros, a AFROESPORTE e o INSTITUTO AFROESPORTE ocupam um lugar específico nessa conversa: estamos próximos da base e dos bastidores, enxergamos quando o talento é cortado por motivos que não aparecem na súmula e acompanhamos a insegurança de quem teme denunciar e ser rotulado como problema.
Não se trata de abandonar a contagem de casos, porque ela é necessária e salvou o tema do silêncio. Mas não podemos esquecer da importância de assumir que não basta medir o que acontece no estádio se a estrutura que decide quem pisa nele continua desigual.
Da arquibancada ao contrato: qual é o próximo passo?
O momento é de janela aberta:
– governo federal discutindo novas leis, – observatórios qualificando dados, – clubes sob pressão da opinião pública, – mídia esportiva e mídias negras sendo chamadas a participar de campanhas antirracistas.
Se esse debate não tiver a cara, a voz e a experiência dos atletas negros, ele vai continuar incompleto.
O papel da AFROESPORTE e do INSTITUTO AFROESPORTE é justamente esse: levar para a mesa de decisões aquilo que os dados ainda não contam sozinhos.
Porque, no fim das contas, combater o racismo no esporte não é só calar o grito racista na arquibancada. É garantir que atletas negros tenham o direito de construir, em segurança, toda a sua história antes, durante e depois do apito final.




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